dezembro 09, 2004

 
PAPO DE MALUCO

Saiu ontem, no Globo, uma matéria sobre o resultado do Programa Internacional de Avaliação de Alunos de 2003, que classificou o ensino brasileiro como um dos piores do mundo. Não é para menos. Dos 40 países avaliados, o Brasil foi o 37º em Leitura, o 39º em Ciências e o último em Matemática. Pior: o número de pontos alcançados pelos nossos estudantes foi tão baixo que não conseguiu sequer classificá-los no nível 1, o mais elementar. Segundo a matéria, "nesse nível, os estudantes são capazes de desempenhar ações óbvias e seguir as informações do problema proposto". Trocando em miúdos: se orangotangos bem-treinados tivessem feito a prova no lugar dos estudantes brasileiros, o resultado poderia ter sido melhor. O teste foi feito com alunos da rede pública e privada, sem distinção de série.

É injusto culpar só os estudantes pelo péssimo resultado, porém. Os professores também contribuem para o desatre do ensino brasileiro. Antes de ingressar na UFRJ, estudei a vida toda na rede privada, a maior parte em colégios católicos (apenas o jardim de infância e a alfabetização foram em colégio laico). Nesse meio tempo, presenciei alguns absurdos em sala de aula que dão uma pequena dimensão do atoleiro em que o sistema educacional está metido. Quando minha irmã estava na 2ª série, por exemplo, meus pais tiveram que ir ao colégio reclamar que a professora havia ensinado que o ordinal do número 60 era "sexUagésimo", ao invés de "sexagésimo". A "mestra" havia tirado ponto numa prova da minha irmã porque ela escrevera da forma correta. Acreditem ou não, a professora se recusava a admitir que estava errada.

Na 3ª ou na 4ª série, tive uma professora que me ensinou que não devíamos dormir com plantas dentro de um quarto fechado. Segundo ela, à noite as plantas sugavam oxigênio e liberavam gás carbônico (ou seja, respiravam) e podíamos acabar asfixiados. Engraçado é imaginar que as plantas só respiram à noite. Como é que elas fazem no resto do dia? "E quer dizer que dormir no mesmo quarto que o meu irmãozinho também pode me matar? Acho que ele libera mais CO2 do que uma samambaia."

Na 8ª série, quando deveríamos pelo menos ter começado a ler os grandes clássicos da literatura, uma professora passou como leitura obrigatória um livro do Paulo Coelho (a saber: "Nas margens do rio Piedra eu sentei e chorei", certamente a maior bosta que já li em toda minha vida). Fui obrigado a fazer prova e tudo.

No 2º ano do 2º grau, uma professora de Geografia insistia em dizer que não havia terremotos no Brasil que fossem causados por deslocamento de placa tectônica. Rebati a afirmação, pois meus pais são geólogos e sei que isso não é verdade. Ela, no entanto, se recusou sequer a discutir o erro. (E nem é preciso ser formado em geologia para perceber o engano; o noroeste do Brasil fica muito perto dos Andes, que é uma área de atividade geológica intensa. Um terremoto com epicentro ali pode muito bem atingir a Amazônia - e atinge).

É incrível pensar que a maioria dos meus colegas de 2º grau se formou sem nunca ter lido a fase realista de Machado de Assis. Sem fugir à média dos estudantes brasileiros, meus companheiros de estudo só liam o que fosse obrigatório. De Machado de Assis, infelizmente, só nos passaram "Helena", da fase romântica. O resto foi só José de Alencar, o abominável, na veia.

Tive apenas um professor de literatura que estimulava a leitura em prol do decoreba. E, claro, não era compreendido e foi convidado a se retirar do colégio no ano seguinte. Uma tristeza. Quando me recordo do primário, percebo como não há incentivo nenhum à leitura, mesmo em estabelecimentos particulares. Não havia biblioteca no colégio em que estudei da 1ª à 8ª série, por exemplo. Aliás, minto. Houve uma biblioteca, mas apenas na 1ª série. A professora nos levou lá uma única vez e depois ela foi desativada. Em compensação, quando eu estava na 8ª série, inauguraram um ginásio poliesportivo com piso emborrachado e placar eletrônico. Por aí dá para perceber quais eram as prioridades de investimento das freiras.

Apesar do Brasil ter obtido uma colocação melhor em Leitura do que em Ciências e Matemática no teste internacional, acho que tudo passa obrigatoriamente pela primeira. E o que mais existe no país são pessoas alfabetizadas que não sabem ler. A internet é um bom lugar para perceber isso. Quantas milhares de perguntas inúteis em fóruns poderiam ser evitadas se as pessoas tivessem a capacidade de ler as regras e os FAQs? Quantas buscas por imagem seriam mais bem-sucedidas se as pessoas parassem um segundo para ver que no Google há um link específico para esse tipo de busca? Parece trivial, mas é um sintoma grave. Se as pessoas não conseguem compreender procedimentos simples descritos num site, imaginem um livro inteiro! É quase um trabalho de Hércules.

Sim, sim. Definitivamente. Não há nada que possa ser feito pela educação brasileira antes que se extermine o analfabetismo funcional. E o primeiro passo nessa direção é assumir sua existência. Pode parecer incrível, mas minha namorada trabalhou num site voltado para o terceiro setor e me contou: é tabu fala sobre analfabetismo funcional no Brasil. Estão mais preocupados em divulgar estatísticas de como mais pessoas aprendem a ler a cada ano sem se importar se estas pessoas continuam a ler. E se compreendem o que lêem.

Tabu maior ainda é falar de analfabetismo funcional entre professores. É praticamente pecado mortal. A verdade é que no Brasil só existem dois tipos de pessoas que se tornam professores: os que têm amor à causa e os que não têm opção (seja por limitação intelectual, seja por limitação empregatícia). Enquanto não existir um terceiro tipo de pessoa, os que se tornam professores porque é vantajoso (financeiramente, profissionalmente), o país continuará a amargar posições medíocres em avaliações internacionais. Para que surja esse tipo de pessoa, é necessário que se pense sobre educação de maneira séria e objetiva no Brasil. Ou seja: sem cotas, sem obras inúteis e com uma reforma do magistério. É utópico, mas não ha nada neste país que não seja.

É isso aí. Votem em mim. E tal.

besuntado por Vitor Dornelles 19:06

Voltar para Repolhópolis

Google
 
Web repolhopolis.blogspot.com

Oba Fofia
A Vida Tem Dessas Coisas
Alexandre Soares Silva
Anamorfoses
Bard do Moe
Barriga Verde
Big Muff
Bla-Bla-Blog
Bumerangue!
Coisinha Supimpa
Copy-Paste
De Volta A Zenn-La
Dois Vezes Um
Esferográfica
Escrevescreve
Eufonia
Failbetter
Filthy McNasty
Gi em SP
H Gasolim Ultramarino
Letras Mortas
Londrisleblogui
Longo Caminho
Los Olvidados
Marcão Fodão
Mau Humor
Nobre Farsa
Noites Na Cidade
Non Sequitur
Os Conspiradores
Palmeirense Falador
Pensar Enlouquece
Perséfone
Pulso Único
puragoiaba
Radar Pop
Rapadura Açucarada
Ricardo Westin
Tédio Profundo
Terceira Base
These Are The Contents...
TV e Cerveja
Veríssimos
24/7
Zeus Era Um Galanteador


Bitter Films
KCRW
Miniclip
xkcd
Orisinal
Pitchfork
the ispot






This page is powered by Blogger. Isn't yours?


View My Stats

Creative Commons License
Blog licensed under a
Creative Commons
License