PAPO DE MALUCO
Saiu ontem, no Globo, uma matéria sobre o resultado do Programa Internacional de Avaliação de Alunos de 2003, que classificou o ensino brasileiro como um dos piores do mundo. Não é para menos. Dos 40 países avaliados, o Brasil foi o 37º em Leitura, o 39º em Ciências e o último em Matemática. Pior: o número de pontos alcançados pelos nossos estudantes foi tão baixo que não conseguiu sequer classificá-los no nível 1, o mais elementar. Segundo a matéria, "nesse nível, os estudantes são capazes de desempenhar ações óbvias e seguir as informações do problema proposto". Trocando em miúdos: se orangotangos bem-treinados tivessem feito a prova no lugar dos estudantes brasileiros, o resultado poderia ter sido melhor. O teste foi feito com alunos da rede pública e privada, sem distinção de série.
É injusto culpar só os estudantes pelo péssimo resultado, porém. Os professores também contribuem para o desatre do ensino brasileiro. Antes de ingressar na UFRJ, estudei a vida toda na rede privada, a maior parte em colégios católicos (apenas o jardim de infância e a alfabetização foram em colégio laico). Nesse meio tempo, presenciei alguns absurdos em sala de aula que dão uma pequena dimensão do atoleiro em que o sistema educacional está metido. Quando minha irmã estava na 2ª série, por exemplo, meus pais tiveram que ir ao colégio reclamar que a professora havia ensinado que o ordinal do número 60 era "sexUagésimo", ao invés de "sexagésimo". A "mestra" havia tirado ponto numa prova da minha irmã porque ela escrevera da forma correta. Acreditem ou não, a professora se recusava a admitir que estava errada.
Na 3ª ou na 4ª série, tive uma professora que me ensinou que não devíamos dormir com plantas dentro de um quarto fechado. Segundo ela, à noite as plantas sugavam oxigênio e liberavam gás carbônico (ou seja, respiravam) e podíamos acabar asfixiados. Engraçado é imaginar que as plantas só respiram à noite. Como é que elas fazem no resto do dia? "E quer dizer que dormir no mesmo quarto que o meu irmãozinho também pode me matar? Acho que ele libera mais CO2 do que uma samambaia."
Na 8ª série, quando deveríamos pelo menos ter começado a ler os grandes clássicos da literatura, uma professora passou como leitura obrigatória um livro do Paulo Coelho (a saber: "Nas margens do rio Piedra eu sentei e chorei", certamente a maior bosta que já li em toda minha vida). Fui obrigado a fazer prova e tudo.
No 2º ano do 2º grau, uma professora de Geografia insistia em dizer que não havia terremotos no Brasil que fossem causados por deslocamento de placa tectônica. Rebati a afirmação, pois meus pais são geólogos e sei que isso não é verdade. Ela, no entanto, se recusou sequer a discutir o erro. (E nem é preciso ser formado em geologia para perceber o engano; o noroeste do Brasil fica muito perto dos Andes, que é uma área de atividade geológica intensa. Um terremoto com epicentro ali pode muito bem atingir a Amazônia - e atinge).
É incrível pensar que a maioria dos meus colegas de 2º grau se formou sem nunca ter lido a fase realista de Machado de Assis. Sem fugir à média dos estudantes brasileiros, meus companheiros de estudo só liam o que fosse obrigatório. De Machado de Assis, infelizmente, só nos passaram "Helena", da fase romântica. O resto foi só José de Alencar, o abominável, na veia.
Tive apenas um professor de literatura que estimulava a leitura em prol do decoreba. E, claro, não era compreendido e foi convidado a se retirar do colégio no ano seguinte. Uma tristeza. Quando me recordo do primário, percebo como não há incentivo nenhum à leitura, mesmo em estabelecimentos particulares. Não havia biblioteca no colégio em que estudei da 1ª à 8ª série, por exemplo. Aliás, minto. Houve uma biblioteca, mas apenas na 1ª série. A professora nos levou lá uma única vez e depois ela foi desativada. Em compensação, quando eu estava na 8ª série, inauguraram um ginásio poliesportivo com piso emborrachado e placar eletrônico. Por aí dá para perceber quais eram as prioridades de investimento das freiras.
Apesar do Brasil ter obtido uma colocação melhor em Leitura do que em Ciências e Matemática no teste internacional, acho que tudo passa obrigatoriamente pela primeira. E o que mais existe no país são pessoas alfabetizadas que não sabem ler. A internet é um bom lugar para perceber isso. Quantas milhares de perguntas inúteis em fóruns poderiam ser evitadas se as pessoas tivessem a capacidade de ler as regras e os FAQs? Quantas buscas por imagem seriam mais bem-sucedidas se as pessoas parassem um segundo para ver que no Google há um link específico para esse tipo de busca? Parece trivial, mas é um sintoma grave. Se as pessoas não conseguem compreender procedimentos simples descritos num site, imaginem um livro inteiro! É quase um trabalho de Hércules.
Sim, sim. Definitivamente. Não há nada que possa ser feito pela educação brasileira antes que se extermine o analfabetismo funcional. E o primeiro passo nessa direção é assumir sua existência. Pode parecer incrível, mas minha namorada trabalhou num site voltado para o terceiro setor e me contou: é tabu fala sobre analfabetismo funcional no Brasil. Estão mais preocupados em divulgar estatísticas de como mais pessoas aprendem a ler a cada ano sem se importar se estas pessoas continuam a ler. E se compreendem o que lêem.
Tabu maior ainda é falar de analfabetismo funcional entre professores. É praticamente pecado mortal. A verdade é que no Brasil só existem dois tipos de pessoas que se tornam professores: os que têm amor à causa e os que não têm opção (seja por limitação intelectual, seja por limitação empregatícia). Enquanto não existir um terceiro tipo de pessoa, os que se tornam professores porque é vantajoso (financeiramente, profissionalmente), o país continuará a amargar posições medíocres em avaliações internacionais. Para que surja esse tipo de pessoa, é necessário que se pense sobre educação de maneira séria e objetiva no Brasil. Ou seja: sem cotas, sem obras inúteis e com uma reforma do magistério. É utópico, mas não ha nada neste país que não seja.
É isso aí. Votem em mim. E tal.