abril 16, 2004

 
A COLA E A SOLA: PERDÃO PELO CACÓFATO



Este texto foi escrito originalmente em 1999. Passou por várias alterações em 2000, principalmente na parte final. A versão que publico agora é a terceira, com algumas mudanças sutis em relação à segunda. Mas isso não faz a menor diferença para vocês, já que a maioria nunca leu esta história. De qualquer forma, achei que devia explicar.

****

10 de maio de 1999 - baseado em fatos reais

Era para ser um dia normal. Estava parado no sinal em frente ao shopping, com a pasta pendurada no ombro direito e mais uma vez atrasado para a faculdade. De lá até o metrô eram umas 3 quadras. Quando o sinal abriu fui um dos primeiros a atravessar. Naquele momento eu mal podia supor o que o universo estava tramando contra mim. Atravessei a primeira faixa de pedestres, atravessei a segunda e, quando fui subir a calçada que era um pouco mais alta, resvalei com o tênis na borda. Não deu outra: metade da sola descolada.

— Caralho, mas que merda!

Eu não podia ir daquele jeito para a faculdade. Ainda mais levando em conta que eu estava atrasado e teria que correr. Com metade da sola descolada, eu me arriscava a levar um tombo. Fora isso, a desgraçada fazia um barulho muito chato: plect, plect.

— "Plect, plect", Melhor entrar no Shopping para colar esta joça, "plect, plect"

Plect, plect, lá vou eu subindo a escada rolante. Plect, plect, procurando a loja, plect, plect, todo mundo olhando para mim, plect, plect, mancando com a sola descolada. Plect, plect, descobri uma loja que vende artigos para desenhistas. Pensei: plect, plect, aqui devem vender cola, plect, plect. Entrei na loja, plect, plect.

— "Plect, plect", Vocês têm cola?, perguntei à vendedora.

— Para colar especificamente o quê?

— Isto!, levantei o pé, a sola balançou como uma maria-mole.

A moça riu e perguntou à outra vendedora se havia cola para o meu "caso".

— Tem o spray adesivo!, gritou ela lá de dentro.

— Ó só, com esse spray é só colocar um pouquinho que cola tudo.

— E quanto custa este spray?

— 22 reais.

— O QUÊ? Nem pensar. O spray está além das minhas condições financeiras. Não tem outra cola não?

— Tem essa aqui, pegou um tubão de cola branca, daqueles que a gente usa no primário.

— Será que isso cola?

— Acho que sim, só que você vai ter que ficar um tempinho parado.

— Quanto custa?

— 4 reais.

Ponderei e achei melhor levar.

— Por que essas coisas só acontecem quando a gente está atrasado?

— É verdade!, (risos da moça).

— Agora, vem cá. Como que eu faço?

— Olha, acho melhor você ir ao banheiro, passar a cola na sola, pressionar o pé e ficar um tempo assim, parado.

—Hum, e onde é o banheiro?

— Logo aqui à direita.

— Obrigado, hein?

— De nada, a moça pôs a cola num saco .

Plect, plect, cadê esse banheiro? Plect, plect, poxa, bem que a moça podia ter aberto aquele spray adesivo e colocado um pouco na minha sola, plect, plect. O que custava? Eu só queria a cola para isso mesmo, uma emergência, plect, plect. E que babaquice a minha, plect, plect! Eu poderia ter simplesmente arrancado esta bendita sola e já estaria no metrô há muito tempo, plect, plect.

Plect, plect, mas já que eu comprei a cola, agora tenho que usar, plect, plect. Entrei numa das cabines do banheiro. Nem tirei a pasta do ombro. Sentei no vaso sanitário, com a tampa fechada, e fui derramando cola tanto na sola quanto no tênis, para colar melhor. Só que eu exagerei um pouco na dose.

Pressionei o pé contra o chão e a cola vazou por todos os lados, lambuzando o piso com gosma branca. Percebendo que não havia solução, resolvi arrancar a sola. Para executar a manobra, apoiei-me no suporte de metal para papel higiênico.

Enquanto tentava arrancar a sola inconveniente, minha pasta começou a balançar e a bater no suporte de metal, provocando estardalhaço e quase me derrubando no chão. Neste momento, um cara tentou abrir a porta da minha cabine e, como eu não havia trancado a porta direito, ele conseguiu e me pegou naquela situação constrangedora. Como ele não me viu direito também, deve ter achado que eu estava fazendo outra coisa.

Ora bolas, gosma branca no chão de um banheiro público, com o que aquilo se parecia, afinal? Some-se a isso os barulhos que eu produzi involutariamente e teremos uma idéia do que as pessoas no banheiro deviam achar que eu estava fazendo dentro daquela cabine idiota. Aquela gosma não podia continuar no chão.

Enfiei a cola e a sola no saco plástico, catei uns papéis higiênicos fazendo mais barulho ainda e pus-me a limpar a sujeira. Quando finalmente consegui, saí da cabine vitorioso e fui lavar as mãos. Enquanto eu as esfregava com sabonete líquido, vi pelo espelho o servente responsável pelo banheiro passar atrás de mim e se dirigir à minha ex-cabine.

— Ei, você, vem aqui!

Ai, caramba! Deve ter ficado um pouco de cola no chão, o cara vai achar que eu estava me masturbando lá dentro, quando na verdade só estava tentando colar a sola do meu tênis com um tubão de cola branca, não deu certo, arranquei a sola e fiz o maior barulho com a pasta batendo no suporte metálico, a cola ficou no chão porque eu pus demais, mas quem iria acreditar nisso? Já podia ver os seguranças me espancando.

— O que foi?, perguntei, na maior cara-de-pau.

— Você jogou o papel higiênico no vaso.

Tive vontade de rir.

— Ah, só isso? Eu resolvo.

Apertei a descarga. A água começou a subir, subir, subir, subir. Era só o que me faltava, entupir o banheiro do shopping! Já podia ver o cara me obrigando a botar a mão dentro da privada.

Eu olhava para a água subindo e olhava pro servente. Quando olhei de novo para o vaso, a água havia finalmente descido e levado junto a prova da minha estupidez. Sorri amarelo e disse:

— Pronto.

O servente me fitou pela última vez, com um olhar de reprovação, daqueles que parecem dizer "da próxima vez você não me escapa". Aproveitei para sair à francesa.

E lá estava eu, novamente na rua, aos 19 anos, mais atrasado do que nunca para a aula do primeiro tempo, andando com um tênis mais baixo que o outro e carregando, além da minha pasta habitual, um saco plástico melecado contendo um tubo de cola branca e uma sola azul.

E o dia estava apenas começando.


besuntado por Vitor Dornelles 23:35

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